Por: Silmara Silva (ONIJÁ)
Mulheres de Cabul
é um ensaio fotográfico da jornalista da Grã Bretanha Harriet Logan. Junto às
fotografias, o livro apresenta depoimentos de mulheres e meninas afegãs. O
trabalho é fruto de duas viagens da jornalista ao Afeganistão: uma em 1997,
quinze meses após o estabelecimento do regime Taleban; a outra em 2001, pouco
depois da queda daquele regime.
As fotos merecem uma observação atenta, e revelam faces
diversas de uma mesma realidade, difícil de compreender e impossível de
aceitar. Os depoimentos expressam os vários sentimentos, convicções, memórias
dessas mulheres e meninas que enfrentaram as cruéis imposições do Taleban. Sim,
elas enfrentaram, ao contrário da imagem de submissão que muitas pessoas ainda
acreditam corresponder à postura das afegãs. Obviamente, o medo é um dos
sentimentos mais presentes, em várias ocasiões limitando as possibilidades de
ação. Mas muitas vezes, a ação é estritamente necessária para sua sobrevivência
e a de seus filhos.
Assim, elas criaram mecanismos de desviar-se e/ou
enfrentar-se com as regras do regime. Aquelas que aceitaram ser fotografadas e
dar seus depoimentos durante o regime do Taleban sabiam que corriam sérios
riscos. Mas mantinham a esperança de que suas vozes fossem ouvidas pelo mundo e
que a indignação vencesse a indiferença. São mães, filhas, avós, professoras,
jornalistas, estudantes, tecelãs, todas sob uma mesma opressão extremamente
violenta.
Dentre os decretos do Taleban, estava a proibição de que
as mulheres trabalhassem fora de casa, sendo destinada somente aos homens a
função de sustento da família. Essa imposição tornava-se ainda mais dura
sabendo-se que o Afeganistão é um país em que vivem tantas mulheres viúvas,
muitas das quais perderam seus companheiros em conflitos anteriores. Uma dessas
mulheres é Aqela, cujo marido foi morto pela explosão de um míssil. Seu
depoimento, realizado em 1997, expressa as dificuldades enfrentadas para
trabalhar:
“O
Taleban me proibia de trabalhar como faxineira em outras casas, como sempre
fiz, então que opções eu tinha? (...) Toda vez que saio de casa, fico achando
que serei pega e que vou apanhar. Minha amiga levou uma surra num ponto de
ônibus, outro dia, sem motivo. Quando perguntei por que, eles simplesmente
bateram nela com mais força. Acho que agora você entende por que temos tanto
medo do Taleban.”
Se a coragem dessas mulheres chama nossa
atenção, a postura de meninas bem novas, dispostas a estudar, provocam surpresa
e admiração. O Taleban também proibiu mulheres e meninas de frequentar escolas,
fosse como professoras ou alunas. Mas professoras audaciosas mantiveram escolas
clandestinas dentro de suas próprias casas, como Latifa, também viúva e mãe de
cinco filhos. Ela declara sua atividade da seguinte maneira:
“Uma
das razões por que decidi me arriscar a continuar lecionando foi garantir que
meus filhos não morressem de fome. Mas eu também achava muito importante que
todas aquelas meninas continuassem seus estudos. Quem eram aqueles homens
ignorantes para negar esse direito às nossas filhas?”
A firmeza de suas alunas é exemplificada em seu
depoimento quando relata um acontecimento:
“Um
dia, uma menina saiu da aula e começou a descer a rua. De repente, um carro
cheio de Talebans estacionou. Eles a agarraram, começaram a revistar suas
sacolas e a gritar com ela. Queriam saber quem a estava ensinando. (...) Ela
ficou apavorada, mas não disse em momento algum onde estivera.”
Os livros de estudo eram escondidos dentro do livro do
Corão ou sob seus véus. Ações perigosas que só realizavam-se por conta da forte
convicção que acompanhava cada uma delas. Yelda, uma menina de nove anos em
2001, revela uma firmeza surpreendente para uma criança de sua idade:
“(...)
Acho que os Talebans não queriam que fôssemos à escola porque nos queriam
burras. (...) Quero estudar e ir à escola. Isso porque, no futuro, quero ajudar
meu povo, que é muito pobre. (...) As outras crianças devem ser corajosas como
nós, as meninas do Afeganistão, fomos.”
Sovita, outra menina de dez anos em 2001, revela em seu
olhar as marcas deixadas por tanta violência. Em seu depoimento, ela revela o
ódio que se construiu em meio a fatos tão duros vivenciados por crianças tão
novas: “Se eu tivesse poder e fosse uma comandante e um Taleban me
interpelasse, eu o executaria”.
O ódio é compartilhado por mulheres mais velhas como
Latifa, com quarenta e sete anos em 2001, que perdeu o pé ao pisar numa mina
dez anos antes. Suas palavras: “Tenho muito ódio dos Talebans – eles foram os
mais cruéis em todos esses longos anos de guerra. Espancaram brutalmente uma de
minhas filhas”.
Por
um lado, é perceptível nos depoimentos realizados em 2001 o alívio manifestado
após a queda do regime Taleban. No entanto, isso não significa que essas
mulheres e meninas estejam livres da opressão. Nahed, professora e supervisora
das escolas de Cabul em 2001, fala sobre o passado anterior ao Taleban e
afirma:
“Antes
do Taleban, os homens afegãos diziam que as mulheres daqui tinham seus
direitos, mas não é verdade. Segundo a nossa tradição, os homens nunca devem
dar direitos iguais às mulheres. (...) No Afeganistão, as mulheres são consideradas
propriedade dos homens. (...) Os homens esperam que suas esposas e filhas façam
tudo por eles. Se a mulher faz algo errado, o homem tem o direito de
espancá-la.”
Uma fala que revela cruamente a opressão à
mulher no Afeganistão – talvez possamos dizer que o regime do Taleban levou ao
extremo mais absurdo uma opressão já enraizada há muito tempo, que não deixa de
existir de uma hora para outra, mas que deve ser enfrentado o tempo todo, das
mais diversas maneiras. O livro traz um fato que chama atenção nesse sentido:
após a queda do Taleban grande parte das mulheres continuou usando as burkhas
por não sentir segurança de sair às ruas sem essa indumentária sem ser reprimida
por algum homem.
A partir dessas informações, entendo que as conquistas das
mulheres afegãs pós regime Taleban são passos de um processo de emancipação que
exige um longo caminho, mas não são pequenos passos. As escolas como a de
Latifa, antes clandestinas, agora funcionam abertamente. Ela é otimista com
relação ao futuro:
“Nós
somos como um bebê recém-nascido, e depois de todos os anos ainda acreditamos
que a paz virá. Hoje eu ando pela cidade e é como se estivesse em outro lugar.
Tanta coisa mudou tão rápido. Eu vejo mulheres caminhando sozinhas, ou dentro
de táxis, sem precisar de acompanhantes.”
Ao mesmo tempo em que o livro Mulheres de Cabul me proporcionou conhecimento acerca de uma
realidade distante da nossa e fortaleceu minha admiração por essas mulheres,
também me fez refletir uma vez mais sobre a emancipação pela qual nós,
mulheres, lutamos no mundo todo. Quando afirmo que a luta pela emancipação das
mulheres afegãs tem um longo caminho a ser percorrido, parto da compreensão de
que a mulher no chamado Ocidente também não alcançou a sua emancipação
completa, por mais avanços que tenham ocorrido nas últimas décadas.
Temos
uma realidade em que muito se vende com aquela imagem de mulher múlti funções,
pseudoliberta, mas escrava de exigências e estereótipos de uma sociedade que se
entende muito civilizada frente aos países do Oriente Médio, da África...
Chamou-me atenção o destaque que a jornalista Harriet Logan direciona para a
presença de produtos de beleza estampando rostos femininos pouco tempo após a
queda do Taleban. Sim, a proibição que esse regime fazia ao uso de fotografias
– consideradas como idolatria – corresponde a uma posição pra lá de
reacionária. Mas nunca é demais trazer à tona as contradições presentes na
ofensiva do mercado a fim de ganhar as mulheres como consumidoras, apresentando
esse processo como a libertação feminina. Valeria perguntar: os rostos
femininos nas embalagens estão a serviço de que e de quem? Relembremos que no
Ocidente, apesar de sua imagem propagada na mídia – representando figuras das
mais diversas –, as mulheres continuam sendo espancadas e assassinadas, nem
sempre conseguindo atenção dessa mesma mídia.
Estou
longe da intenção de pregar um discurso de condenação dos cuidados com seu
corpo e sua beleza, direito que toda mulher precisa ter – lembremos que sob o
Taleban, as mulheres eram proibidas de usar batom! Mas entendo que a situação
das mulheres no Ocidente carrega contradições bem profundas, de modo que não
podemos acreditar que este possui o modelo de emancipação feminina a ser
seguido pelas mulheres de outros lugares do mundo. Na verdade, é um processo mundial
– ainda que cada país apresente suas particularidades – que certamente passa
pelo enfrentamento aos regimes ditatoriais, mas também aos regimes ditos
democráticos sob os quais tantas mulheres seguem sofrendo e morrendo. Mais que
isso, passa pelo enfrentamento ao poder do imperialismo, responsável por tantas
atrocidades contra mulheres e meninas em vários lugares desse planeta.