terça-feira, 30 de julho de 2013

Lendo Mulheres de Cabul e refletindo sobre a emancipação das mulheres


Por: Silmara Silva (ONIJÁ)

            Mulheres de Cabul é um ensaio fotográfico da jornalista da Grã Bretanha Harriet Logan. Junto às fotografias, o livro apresenta depoimentos de mulheres e meninas afegãs. O trabalho é fruto de duas viagens da jornalista ao Afeganistão: uma em 1997, quinze meses após o estabelecimento do regime Taleban; a outra em 2001, pouco depois da queda daquele regime.

            As fotos merecem uma observação atenta, e revelam faces diversas de uma mesma realidade, difícil de compreender e impossível de aceitar. Os depoimentos expressam os vários sentimentos, convicções, memórias dessas mulheres e meninas que enfrentaram as cruéis imposições do Taleban. Sim, elas enfrentaram, ao contrário da imagem de submissão que muitas pessoas ainda acreditam corresponder à postura das afegãs. Obviamente, o medo é um dos sentimentos mais presentes, em várias ocasiões limitando as possibilidades de ação. Mas muitas vezes, a ação é estritamente necessária para sua sobrevivência e a de seus filhos.



            Assim, elas criaram mecanismos de desviar-se e/ou enfrentar-se com as regras do regime. Aquelas que aceitaram ser fotografadas e dar seus depoimentos durante o regime do Taleban sabiam que corriam sérios riscos. Mas mantinham a esperança de que suas vozes fossem ouvidas pelo mundo e que a indignação vencesse a indiferença. São mães, filhas, avós, professoras, jornalistas, estudantes, tecelãs, todas sob uma mesma opressão extremamente violenta.

            Dentre os decretos do Taleban, estava a proibição de que as mulheres trabalhassem fora de casa, sendo destinada somente aos homens a função de sustento da família. Essa imposição tornava-se ainda mais dura sabendo-se que o Afeganistão é um país em que vivem tantas mulheres viúvas, muitas das quais perderam seus companheiros em conflitos anteriores. Uma dessas mulheres é Aqela, cujo marido foi morto pela explosão de um míssil. Seu depoimento, realizado em 1997, expressa as dificuldades enfrentadas para trabalhar:

“O Taleban me proibia de trabalhar como faxineira em outras casas, como sempre fiz, então que opções eu tinha? (...) Toda vez que saio de casa, fico achando que serei pega e que vou apanhar. Minha amiga levou uma surra num ponto de ônibus, outro dia, sem motivo. Quando perguntei por que, eles simplesmente bateram nela com mais força. Acho que agora você entende por que temos tanto medo do Taleban.”




            Se a coragem dessas mulheres chama nossa atenção, a postura de meninas bem novas, dispostas a estudar, provocam surpresa e admiração. O Taleban também proibiu mulheres e meninas de frequentar escolas, fosse como professoras ou alunas. Mas professoras audaciosas mantiveram escolas clandestinas dentro de suas próprias casas, como Latifa, também viúva e mãe de cinco filhos. Ela declara sua atividade da seguinte maneira:

“Uma das razões por que decidi me arriscar a continuar lecionando foi garantir que meus filhos não morressem de fome. Mas eu também achava muito importante que todas aquelas meninas continuassem seus estudos. Quem eram aqueles homens ignorantes para negar esse direito às nossas filhas?”

            A firmeza de suas alunas é exemplificada em seu depoimento quando relata um acontecimento:

Um dia, uma menina saiu da aula e começou a descer a rua. De repente, um carro cheio de Talebans estacionou. Eles a agarraram, começaram a revistar suas sacolas e a gritar com ela. Queriam saber quem a estava ensinando. (...) Ela ficou apavorada, mas não disse em momento algum onde estivera.”

            Os livros de estudo eram escondidos dentro do livro do Corão ou sob seus véus. Ações perigosas que só realizavam-se por conta da forte convicção que acompanhava cada uma delas. Yelda, uma menina de nove anos em 2001, revela uma firmeza surpreendente para uma criança de sua idade:

“(...) Acho que os Talebans não queriam que fôssemos à escola porque nos queriam burras. (...) Quero estudar e ir à escola. Isso porque, no futuro, quero ajudar meu povo, que é muito pobre. (...) As outras crianças devem ser corajosas como nós, as meninas do Afeganistão, fomos.”

            Sovita, outra menina de dez anos em 2001, revela em seu olhar as marcas deixadas por tanta violência. Em seu depoimento, ela revela o ódio que se construiu em meio a fatos tão duros vivenciados por crianças tão novas: “Se eu tivesse poder e fosse uma comandante e um Taleban me interpelasse, eu o executaria”.



            O ódio é compartilhado por mulheres mais velhas como Latifa, com quarenta e sete anos em 2001, que perdeu o pé ao pisar numa mina dez anos antes. Suas palavras: “Tenho muito ódio dos Talebans – eles foram os mais cruéis em todos esses longos anos de guerra. Espancaram brutalmente uma de minhas filhas”.

Por um lado, é perceptível nos depoimentos realizados em 2001 o alívio manifestado após a queda do regime Taleban. No entanto, isso não significa que essas mulheres e meninas estejam livres da opressão. Nahed, professora e supervisora das escolas de Cabul em 2001, fala sobre o passado anterior ao Taleban e afirma:

“Antes do Taleban, os homens afegãos diziam que as mulheres daqui tinham seus direitos, mas não é verdade. Segundo a nossa tradição, os homens nunca devem dar direitos iguais às mulheres. (...) No Afeganistão, as mulheres são consideradas propriedade dos homens. (...) Os homens esperam que suas esposas e filhas façam tudo por eles. Se a mulher faz algo errado, o homem tem o direito de espancá-la.”

            Uma fala que revela cruamente a opressão à mulher no Afeganistão – talvez possamos dizer que o regime do Taleban levou ao extremo mais absurdo uma opressão já enraizada há muito tempo, que não deixa de existir de uma hora para outra, mas que deve ser enfrentado o tempo todo, das mais diversas maneiras. O livro traz um fato que chama atenção nesse sentido: após a queda do Taleban grande parte das mulheres continuou usando as burkhas por não sentir segurança de sair às ruas sem essa indumentária sem ser reprimida por algum homem.

            A partir dessas informações, entendo que as conquistas das mulheres afegãs pós regime Taleban são passos de um processo de emancipação que exige um longo caminho, mas não são pequenos passos. As escolas como a de Latifa, antes clandestinas, agora funcionam abertamente. Ela é otimista com relação ao futuro:

“Nós somos como um bebê recém-nascido, e depois de todos os anos ainda acreditamos que a paz virá. Hoje eu ando pela cidade e é como se estivesse em outro lugar. Tanta coisa mudou tão rápido. Eu vejo mulheres caminhando sozinhas, ou dentro de táxis, sem precisar de acompanhantes.”
            
        Ao mesmo tempo em que o livro Mulheres de Cabul me proporcionou conhecimento acerca de uma realidade distante da nossa e fortaleceu minha admiração por essas mulheres, também me fez refletir uma vez mais sobre a emancipação pela qual nós, mulheres, lutamos no mundo todo. Quando afirmo que a luta pela emancipação das mulheres afegãs tem um longo caminho a ser percorrido, parto da compreensão de que a mulher no chamado Ocidente também não alcançou a sua emancipação completa, por mais avanços que tenham ocorrido nas últimas décadas.

Temos uma realidade em que muito se vende com aquela imagem de mulher múlti funções, pseudoliberta, mas escrava de exigências e estereótipos de uma sociedade que se entende muito civilizada frente aos países do Oriente Médio, da África... Chamou-me atenção o destaque que a jornalista Harriet Logan direciona para a presença de produtos de beleza estampando rostos femininos pouco tempo após a queda do Taleban. Sim, a proibição que esse regime fazia ao uso de fotografias – consideradas como idolatria – corresponde a uma posição pra lá de reacionária. Mas nunca é demais trazer à tona as contradições presentes na ofensiva do mercado a fim de ganhar as mulheres como consumidoras, apresentando esse processo como a libertação feminina. Valeria perguntar: os rostos femininos nas embalagens estão a serviço de que e de quem? Relembremos que no Ocidente, apesar de sua imagem propagada na mídia – representando figuras das mais diversas –, as mulheres continuam sendo espancadas e assassinadas, nem sempre conseguindo atenção dessa mesma mídia.


Estou longe da intenção de pregar um discurso de condenação dos cuidados com seu corpo e sua beleza, direito que toda mulher precisa ter – lembremos que sob o Taleban, as mulheres eram proibidas de usar batom! Mas entendo que a situação das mulheres no Ocidente carrega contradições bem profundas, de modo que não podemos acreditar que este possui o modelo de emancipação feminina a ser seguido pelas mulheres de outros lugares do mundo. Na verdade, é um processo mundial – ainda que cada país apresente suas particularidades – que certamente passa pelo enfrentamento aos regimes ditatoriais, mas também aos regimes ditos democráticos sob os quais tantas mulheres seguem sofrendo e morrendo. Mais que isso, passa pelo enfrentamento ao poder do imperialismo, responsável por tantas atrocidades contra mulheres e meninas em vários lugares desse planeta. 

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