quinta-feira, 25 de julho de 2013

Sobrevivi para contar: um relato emocionante de Immaculée Ilibagiza


Silmara Silva [ONIJÁ]

            Immaculée nasceu e cresceu numa aldeia em Kibuye, província de Ruanda Ocidental. Ao longo de sua infância, destacam-se a bela natureza do lugar em que vivia e a felicidade de um lar em que o amor mostrava-se evidente. Seus pais, ambos professores, esforçavam-se para garantir uma boa educação aos quatro filhos, dos quais Immaculée era a única menina.
            Até os 10 anos de idade, esta garota de família tútsi nunca fora questionada sobre qual era a sua etnia. Seus pais não falavam desses conflitos em casa, e na escola para crianças pequenas também não se abordava essa questão. Mas quando muda de escola, Immaculée se depara com uma chamada feita pelo professor baseada na divisão étnica. Ele já havia pedido que se levantassem os hútus (que compunham a maioria da população nacional com mais de 80%), os tútsis e os twas (que representavam apenas 1% da população).       Mas Immaculée permanecia imóvel: não sabia a qual etnia pertencia. Expulsa da sala, devendo voltar somente quando soubesse a resposta, ela então passa a vivenciar em seu cotidiano uma divisão construída historicamente, difícil de ser compreendida até mesmo pelos adultos, imagine por uma criança, ainda isenta de toda maldade.
Já na primeira parte do livro, Immaculée aborda a dificuldade de diferenciar hútus e tútsis:

“Diziam que os tútsis eram mais altos, de pele mais clara e narizes mais afilados. Mas isso não era verdade, já que tútsis e hútus casaram-se entre si durante séculos, portanto nossas cadeias de genes se haviam misturado. Hútus e tútsis falavam o mesmo idioma – kinyarwanda – e tinham uma história comum. Nossas culturas eram praticamente iguais: cantávamos as mesmas canções, cultivávamos a mesma terra, frequentávamos as mesmas igrejas e cultuávamos o mesmo Deus. Vivíamos nas mesmas aldeias, nas mesmas ruas e, ocasionalmente, nas mesmas casas”.



Mas a divisão étnica estava posta no plano político – e isso traria consequências profundas. Como parte da política do governo hútu que pretendia excluir os tútsis nos mais diversos âmbitos da sociedade, Immaculée não consegue uma bolsa para os estudos secundários mesmo apresentando notas muito acima da média. Mas isso era apenas o começo das mudanças em sua vida, até então tão harmoniosa. Anos depois, quando já cursava a universidade, ela esteve imersa num conflito que acabou com a vida de quase toda a sua família e de mais de um milhão de pessoas em cerca de cem dias: o massacre de Ruanda, de 1994.
            Sobrevivi para contar: O poder da fé me salvou de um massacre é o relato pessoal de Immaculée Ilibagiza que aos 22 anos de idade passou mais de 90 dias escondida num pequeno banheiro com mais sete mulheres e meninas tútsis. O genocídio promovido pelo governo hútu alcançou proporções tão amplas que Immaculée escutava seus antigos vizinhos e amigos hútus procurando por ela a fim de matar mais uma “barata”, como eram chamados os tútsis – inclusive nos programas de rádio que ao longo de todo o massacre incitava a população hútu a matar todos os tútsis que fossem encontrados, incluindo crianças e bebês. O desafio era explícito: acabar com os tútsis, de modo que não sobrasse nenhum em todo o país.



Apesar de ser um relato pessoal e a própria autora advertir que o livro não se trata de uma obra para contar a história de Ruanda e do genocídio, ela traz aspectos importantes que ajudam a compreender a dimensão histórica de um conflito apresentado muitas vezes como retrato da “selvageria” dos povos africanos, como costuma fazer a mídia ocidental. Ela traz algumas informações valiosas:

“(...) os colonizadores alemães, e depois os belgas que os substituíram, tinham convertido a estrutura social então reinante em Ruanda (...) em um sistema discriminatório de classes, tendo por base a raça dos indivíduos. Os belgas apoiavam a aristocrática minoria tútsi e os colocaram à testa do governo; assim sendo, os tútsis recebiam uma educação superior para melhor dirigir o país e gerar maiores lucros para seus senhores belgas. Estes instituíram uma carteira de identidade étnica para distinguir mais facilmente quem pertencia a qual tribo (...). Quando os tútsis reivindicaram mais independência, os belgas se voltaram contra eles e, em 1959, encorajaram uma sangrenta revolta dos hútus (...)”

            Immaculée também nos chama a atenção para o fato de o mundo ter fechado os olhos frente a um dos genocídios mais terríveis da história:

“A ONU havia retirado sua força de paz assim que começou o massacre. (...) Os belgas, nossos antigos colonizadores, haviam sido os primeiros a remover suas tropas; quanto aos Estados Unidos, nem ao menos reconheciam que havia um genocídio em curso!”

            Mas como já mencionei acima, o livro é um relato pessoal. Difícil de descrever. Ao longo dos mais de 90 dias escondendo-se dos hútus, Immaculée fortaleceu sua fé de modo surpreendente. Sem poder falar, tomar banho, alimentando-se raramente, com os movimentos extremamente reduzidos devido ao espaço minúsculo em que se encontrava, ela acreditou que seria possível sobreviver. Suas orações chegavam a durar 12 horas seguidas, sem interrupção. Ao sair do esconderijo junto às outras tútsis, ela encontrava-se com 29 quilos apenas. Fraca fisicamente, demonstrou uma força inigualável até estar de fato livre da ameaça de morrer e tornar-se mais um corpo entre tantos que foi obrigada a ver nas inúmeras pilhas espalhadas pelas ruas.

            Uma leitura que, apesar de muito triste, nos agrega valores humanos constantemente esquecidos. Immaculée venceu o ódio não somente porque sobreviveu a um genocídio, mas também porque soube depois de toda essa experiência acreditar na humanidade ao invés de multiplicar o ódio que matou as pessoas que ela mais amava.

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